Articles

Valores normais das medições ecocardiográficas. Um estudo baseado na população

Posted on

Artigo Original

Valores Normais de Medições Ecocardiográficas. Um estudo baseado na população

Paulo Roberto Schvartzman, Flávio Danni Fuchs, Alex Gules Mello, Maikel Coli, Mario Schvartzman, Leila Beltrami Moreira

Porto Alegre, RS – Brasil

OBJECTIVO: Descrever medições ecocardiográficas e massa ventricular esquerda numa amostra populacional de habitantes adultos saudáveis da região urbana de Porto Alegre.
METHODS: Foi feito um estudo analítico, observacional, baseado na população, de corte transversal. Através de uma amostra probabilística em várias fases, 114 indivíduos foram seleccionados para serem submetidos a um modo M e ecocardiograma bidimensional com Doppler colorido. As análises foram restritas a participantes saudáveis. As medições ecocardiográficas foram descritas por média, desvio padrão, percentil 95 e limites de confiança de 95%.
RESULTADOS: Um total de 100 participantes saudáveis, com várias características semelhantes às da população original, tiveram um exame ecocardiográfico completo e fiável. As medidas da aorta, átrio esquerdo, septo interventricular, ventrículo esquerdo em sístole e diástole, parede posterior esquerda e massa ventricular esquerda, ajustada ou não à área de superfície corporal ou altura, eram significativamente mais elevadas nos homens. O tamanho do ventrículo direito era semelhante entre os géneros. Várias medidas ecocardiográficas encontravam-se dentro dos limites normais. O septo interventricular, a parede posterior esquerda e a massa ventricular esquerda, ajustada ou não para medidas antropométricas, e as dimensões aórticas tinham uma média e um alcance inferiores aos limites de referência.
CONCLUSÃO: As médias e estimativas de distribuição para as medições do septo interventricular, parede posterior esquerda e massa ventricular esquerda encontradas neste levantamento eram inferiores às indicadas pela literatura internacional e aceites como limites normais.
Palavras-chave: ecocardiograma, valores normais

Os valores normais para as medidas ecocardiográficas apresentadas nos livros escolares 1 são heterogéneos e, por vezes, inconsistentes. São baseados em estudos originais de indivíduos que foram avaliados por suspeita de doença cardíaca, o que não foi confirmado posteriormente 2,3. Estes indivíduos podem estar livres de doença cardiovascular detectável determinada pela ecocardiografia; contudo, não representam a população normal. Outros estudos não indicam a origem da amostra ou utilizam membros da família dos pacientes ou funcionários do hospital para determinar valores normais 4.

Os parâmetros ecocardiográficos normais de uma população devem provir de uma amostra aleatória da população, não hospitalizada e assintomática. Nenhum estudo deste tipo foi realizado no Brasil utilizando amostras representativas de adultos livres de doenças cardiovasculares. Na literatura internacional, existem estudos de valores normais das dimensões, função e massa ventricular esquerda. No entanto, os valores obtidos noutros países podem não ser aplicados no Brasil 1,5. Portanto, é de relevância científica estabelecer valores ecocardiográficos normais em cidadãos brasileiros livres de doenças cardiovasculares e representando a composição étnica e social das comunidades.

Neste estudo, apresentamos dados ecocardiográficos obtidos numa amostra representativa dos adultos que vivem na cidade de Porto Alegre.

Métodos

Foi realizado um estudo analítico, observacional, baseado na população, de corte transversal. O processo de randomização proporcional foi feito em múltiplas etapas e em conglomerados, de acordo com os dados do IBGE, relativos ao censo de 1991. Os critérios de inclusão foram que os participantes tinham de ter pelo menos 18 anos de idade e viver na residência seleccionada. Entre 1.219 indivíduos seleccionados e entrevistados no domicílio, uma subamostra foi seleccionada aleatoriamente para ser submetida ao modo M e à ecocardiografia bidimensional com Doppler a cores.

A título de exemplo, 10% da população do estudo foi escolhida, e 10% adicionais foram escolhidos para substituir a ausência de espectáculos, gerando um total de 132 indivíduos. Destes, 75 indivíduos foram avaliados, o que corresponde a 57% da população elegível do estudo. Para completar a amostra planeada e substituir o não comparecimento, 57 participantes dos mesmos sectores que os ausentes foram escolhidos ao acaso, dos quais 39 apareceram (68%). O tamanho final da amostra foi de 114 indivíduos. Tanto na primeira como na segunda tentativa de contacto, procedemos, sequencialmente, a partir de convite por carta, chamada telefónica e visita domiciliária, pagando sempre as despesas. As análises foram restritas aos participantes saudáveis, especialmente no que diz respeito às patologias do sistema cardiovascular, excluídas pela história e exame físico. Além disso, a doença valvar foi excluída com o exame ecocardiográfico. Nenhum paciente tinha antecedentes de hipertensão ou uso de drogas cardiovasculares.

O tamanho da amostra foi calculado de acordo com estimativas da precisão das medições; por conseguinte, esperávamos estudar um número adequado de adultos com intervalos de confiança fiáveis limitados aos parâmetros da população inquirida. Devido à ausência de uma base sólida (estudos de amostragem representativa de comunidades), utilizámos a descrição dos meios e dispersão das medições apresentadas pelos estudos que utilizaram amostras sistemáticas. Muitos destes estudos descrevem os parâmetros e associações em amostras de aproximadamente 100 indivíduos, um número que era operacionalmente viável de cumprir neste inquérito.

M-mode e ecocardiografia bidimensional com Doppler a cores foi realizada nos indivíduos em decúbito lateral esquerdo, utilizando um modelo 870 de Aloka com transdutor de 3,5 MHz e com registo concomitante de um chumbo electrocardiográfico. Foram adquiridas três medições consecutivas para cada parâmetro ecocardiográfico no final da expiração; e a média destas três medições foi utilizada como parâmetro final. Em todos os pacientes, foi utilizada a visão de longo eixo do coração. Todas as medições ecocardiográficas foram adquiridas de acordo com os padrões estabelecidos pela Sociedade Americana de Ecocardiografia 6 e com as recomendações propostas por Devereux et al 7.

Aorta, átrio esquerdo, septo interventricular, e espessura da parede posterior, ventrículo esquerdo em sístole e diástole, e o ventrículo direito foram avaliados. O início do complexo QRS (primeira deflexão) foi utilizado como área para obter as medidas no final da diástole e a máxima incursão do movimento septal para as medidas da dimensão sistólica do ventrículo esquerdo 6. A cavidade e a espessura da parede foram medidas ao nível das cordas mitrais 6.

Massa ventricular esquerda foi calculada usando a fórmula de Devereux et al 7:

Massa ventricular esquerda (g)= 0,80x+0,6 onde SED é espessura do septo ventricular na diástole final, LVED é diâmetro diastólico final do ventrículo esquerdo, e PWED é espessura da parede posterior na diástole. Obtivemos o peso (quilogramas), altura (centímetros), índice de massa corporal (quilograma para metro quadrado), e área de superfície corporal (calculada pela fórmula: peso 0,425 x altura 0,725 x 72,84/10,000). Dados adicionais, incluindo o consumo de álcool e o nível socioeconómico, foram recolhidos através de um questionário padronizado.

Os parâmetros do nosso estudo foram descritos como meios e estimativas de distribuição (desvio padrão e intervalo de confiança de 95%). As análises foram feitas em toda a amostra e estratificadas por sexo. Apresentamos os valores de P, assumindo uma significância estatística de P inferior a 5%.

Resultados

A amostra original tinha a distribuição de sexo e idade e outras características demográficas representativas semelhantes às da população de Porto Alegre.

Um total de 100 em 114 ecocardiogramas foram feitos em participantes livres de doenças cardiovasculares ou outras perturbações clinicamente evidentes. Cinquenta e dois (52%) eram do sexo feminino e 17 (17%) declararam-se de origem africana. Trinta e nove (39%) participantes eram fumadores, com um consumo diário de 14,6±13,9 cigarros por dia, 11 (11%) eram ex-fumadores, e 50 (50%) nunca tinham fumado.

As características dos indivíduos estudados, estratificadas por sexo, são apresentadas na tabela I. A idade, o índice de massa corporal e as pressões sanguíneas sistólica e diastólica eram semelhantes em homens e mulheres. Altura, área de superfície corporal, peso, frequência cardíaca, consumo de álcool, e anos de frequência escolar foram significativamente mais elevados nos homens. O ritmo cardíaco era significativamente mais elevado nas mulheres.

Para avaliar a variabilidade interobservador, outro ecocardiógrafo avaliou as medições feitas em 11 pacientes. Os meios das medições feitas por ambos os observadores tinham uma variabilidade inferior a 5% em todas as variáveis analisadas.

As medidas ecocardiográficas são apresentadas, de acordo com o sexo, na tabela II, incluindo os valores da massa ventricular esquerda corrigidos pela área de superfície e altura do corpo. As dimensões da aorta, átrio esquerdo, septo interventricular, ventrículo esquerdo em sístole e diástole, parede posterior, e massa do ventrículo esquerdo, corrigida ou não, foram significativamente mais elevadas nos homens. A dimensão do ventrículo direito era semelhante em ambos os sexos.

Os 5º e 95º percentis dos parâmetros ecocardiográficos são apresentados na tabela III.

A massa ventricular esquerda dos participantes brancos era de 121,5±34,4g e em participantes negros era de 124,2±33,6g (P=0,77). A massa ventricular corrigida pela altura ou superfície corporal não foi estatisticamente diferente entre brancos e negros.

Não foi encontrada diferença estatisticamente significativa na massa ventricular esquerda, absoluta ou corrigida pela altura ou área de superfície corporal, entre fumadores actuais, ex-fumadores, e participantes que nunca tinham fumado.

Discussão

Estudos com o objectivo de definir parâmetros normais devem descrever a origem da população e os critérios de amostragem. A maioria absoluta dos estudos de referência de valores normais para medições ecocardiográficas não apresenta esta informação. Os valores de referência para o ecocardiograma devem provir de uma amostra representativa da população dos habitantes livres de doenças cardiovasculares ou de outras doenças clinicamente relevantes para o parâmetro de interesse. Muitos estudos não especificam a origem da população estudada ou utilizam familiares de pacientes, empregados ou indivíduos cujo ecocardiograma foi interpretado como normal 2-4,8,9. Os critérios de amostragem do presente estudo diferenciam-no da maioria dos estudos relatados na literatura, porque este inquérito oferece uma probabilidade equivalente dos habitantes adultos de Porto Alegre a serem seleccionados.

A influência da substituição por substitutos de alguns nomeados que não compareceram não pôde ser determinada directamente. Considerando que o número de ausentes no primeiro convite foi relativamente pequeno e que os substitutos foram recrutados a partir da mesma região geográfica e nível socioeconómico, pode assumir-se que não ocorreu um viés de selecção. A dimensão da amostra permitiu uma pequena dispersão dos parâmetros ecocardiográficos, como se pode ver pelos intervalos de confiança calculados de 95%.

Dificuldades na obtenção de imagens ecocardiográficas aceitáveis ocorreram em 5% dos participantes, e estes foram excluídos. Savage et al 10 estudaram a qualidade da imagem em 6.148 homens e mulheres do estudo de Framingham na faixa etária entre os 17-90 anos de idade. Os autores conseguiram obter imagens interpretáveis em 80% dos casos, atingindo 97% em pacientes mais jovens. Obesidade, diminuição da capacidade pulmonar e doenças cardiovasculares foram associadas a ecocardiogramas inaceitáveis, independentemente da idade do paciente.

A análise da variabilidade interobservador entre os dois leitores no presente estudo demonstrou que as medidas não diferiam significativamente para as dimensões e função ventricular esquerda. A dispersão dos resultados está dentro dos limites normais estabelecidos na literatura 11.

As diferenças entre os parâmetros ecocardiográficos observados no presente estudo e os apresentados na literatura são amplas, por exemplo, para a espessura do septo e da parede posterior e dimensões da aorta. Devido às medidas do septo e da parede posterior, a massa ventricular esquerda era também menor do que os valores de referência, corrigidos ou não pela área da superfície corporal ou altura. Os limites normais são de 1,0cm para o septo interventricular e parede posterior definidos pelo percentil 95, contra 1,1cm descritos num livro didáctico 1. Os meios para estes parâmetros encontrados neste estudo também diferem dos da literatura 2,3,5,8,9,12. As diferenças têm maior magnitude se o intervalo de confiança de 95% for utilizado para definir a normalidade. As outras medidas ecocardiográficas estão dentro dos valores normais apresentados na literatura internacional 2-5,8,9,12. Pelo menos um estudo brasileiro, utilizando uma amostra de 32 funcionários de um hospital, apresentou números semelhantes aos do nosso estudo. Algumas das diferenças podem ser devidas a diferentes fórmulas aplicadas à estimativa da massa ventricular esquerda. O método Penn foi utilizado nesse estudo, que excluiu a superfície endocárdica da espessura parietal e incluiu esta espessura nas dimensões da cavidade. A Sociedade Americana de Ecocardiografia recomenda que as medições devem utilizar o eco mais externo (que conduza ao bordo de ataque) 6. No entanto, isto produz uma superestimação sistemática da massa ventricular esquerda quando comparada com a da autópsia. Portanto, é necessário corrigir o resultado por um factor derivado dos estudos anatómicos pós-morte 7.

A mesma inferência pode explicar parte das discrepâncias entre os valores de massa ventricular esquerda fornecidos por diferentes fórmulas em diferentes equipamentos de eco e o que se encontra no nosso estudo. Por exemplo, no equipamento utilizado no presente estudo, foi utilizado o método Penn para o cálculo da massa do ventrículo esquerdo.

Apesar da utilização de diferentes fórmulas, persistem diferenças inexplicáveis. As únicas consistentes são critérios de aleatorização ou da população do estudo, assumindo que os exames foram feitos com perícia técnica e de acordo com as recomendações internacionais 6. A primeira explicação é mais razoável porque a constituição étnica dos habitantes de Porto Alegre é semelhante à dos países europeus e norte-americanos. As diferenças antropométricas só poderiam explicar as diferenças absolutas entre as dimensões mencionadas.

A dimensão aórtica menor foi também notável em relação aos valores relatados na literatura. Mais uma vez, os diferentes critérios de amostragem são a melhor explicação disponível para a discrepância entre os valores obtidos no nosso estudo e os apresentados em livros escolares internacionais.

Em conclusão, os resultados deste estudo permitem concluir que, em adultos da região urbana de Porto Alegre, os meios e a distribuição normal convencionalmente aceites como limites de normalidade para as dimensões do septo interventricular, parede posterior, e massa ventricular esquerda são inferiores aos apresentados na literatura de referência; a massa ventricular esquerda é maior nos homens, corrigida ou não para as variáveis antropométricas. As consequências destas descobertas para a prática clínica são óbvias como, por exemplo, na estratificação do risco dos pacientes com hipertensão.

1. Feigenbaum H. Ecocardiografia. 5ª Edição ed. Philadelphia: Lea & Febiger; 1993.

2. Trivedi S, Gupta O, Jain A, et al. Medições ecocardiográficas do modo M do ventrículo esquerdo da população indiana. J Assoc Physicians India 1993; 41: 14-16. Knutsen K, Stugaard M, Michelsen S, et al. Encontros ecocardiográficos do modo M em noruegueses aparentemente saudáveis, não-atléticos com idades entre os 20-70 anos. Influência da idade, sexo, e área de superfície corporal. J Intern Med 1989; 225: 111-15.

4. Morcerf F, Thevenard R, Fuks J, et al. Ecocardiografia. Método e valores normais. Arq Bras Cardiol 1976;29:459-465. Arq Bras Cardiol 1976; 29: 459-65.

5. Shub C, Klein A, Zachariah P, et al. Determinação da massa ventricular esquerda por ecocardiografia numa população normal: efeito da idade e sexo para além do tamanho do corpo. Mayo Clin Proc 1994; 69: 205-11. Sahn D, DeMaria A, Kisslo J, et al. The Committee on M-mode Standardization of the American Society of Echocardiography: recomendations regarding quantitation in M-mode echocardiography: results of a survey of echocardiographic methods. Circulação 1978; 58: 1072-83.

7. Devereux R, Alonso D, Lutas E, et al. Avaliação ecocardiográfica da hipertrofia ventricular esquerda: comparação com resultados de necropsia. Am J Cardiol 1986; 57: 450-8.

8. Devereux R, Lutas E, et al. Normalização das medidas anatómicas ecocardiográficas do modo M do ventrículo esquerdo. J Am Coll Cardiol 1984; 4: 1222-30.

9. Lauer M, Larson M, Levy D. Valores de referência do modo M específicos de género em adultos: valores derivados da população com consideração do impacto da altura. J Am Coll Cardiol 1995; 26: 1039-46.

10. Savage D, Garrison R, Kannel W, et al. Considerações sobre o uso da ecocardiografia na epidemiologia. O estudo de Framingham. Hypertension 1987; 9: II40-II4.

11. Gardin J, Wong N, Bommer W, et al. Desenho ecocardiográfico de uma investigação multicêntrica de sujeitos idosos de vida livre: o Estudo de Saúde Cardiovascular. J Am Soc Echocardiogr 1992; 5: 63-72.

12. Marcus R, Krause L, Weder A, et al. Determinantes específicos do sexo do aumento da massa ventricular esquerda no Estudo de Pressão Arterial Tecumseh. Circulação 1994; 90: 928-936.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *