França e os Estados Unidos parecem não estar de acordo sobre questões de liberdade religiosa. Esta lacuna na compreensão aumentou dramaticamente em 1998, quando o Congresso dos EUA e o Governo de França aprovaram ambos legislação sobre liberdade religiosa que parecia abraçar objectivos opostos. Nos Estados Unidos, o International Religious Freedom Act (IRFA) impôs sanções a países de todo o mundo que foram condenados por violar a liberdade religiosa. A nova lei criou uma Comissão Americana para a Liberdade Religiosa Internacional e nomeou um embaixador geral para chefiar um escritório sobre liberdade religiosa internacional no Departamento de Estado. Em França (logo no dia seguinte, por coincidência), a Assembleia Nacional recomendou a criação de uma task-force governamental, a Missão Interministerial contra Seitas (MILS), para controlar os chamados cultos perigosos. Em cada caso, a legislação foi aprovada por unanimidade. No entanto, os seus diferentes objectivos pareciam estar em conflito. Em 1999, o Embaixador dos EUA Robert Seiple, Baptista e ex-presidente da organização de desenvolvimento evangélico Visão Mundial, encontrou-se com Alain Vivien, o chefe francês do MILS, que é também presidente de uma organização secular de desenvolvimento chamada Voluntários para o Progresso. Os dois discutiram as suas diferenças, mas não conseguiram chegar a um entendimento comum sobre os objectivos das duas leis.
O paradoxo é que ambos os países abracem a liberdade religiosa e respeitem a separação entre igreja e estado. Apesar das diferentes histórias religiosas, a França e os Estados Unidos abraçaram há muito tempo a liberdade religiosa nos seus documentos constitucionais. Este princípio foi afirmado quase simultaneamente nos dois países – na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, e na Carta dos Direitos dos EUA – em 1789. No final da Segunda Guerra Mundial, a França e os Estados Unidos cooperaram na redacção da Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que inclui a liberdade religiosa. Ambos também abraçam a separação da Igreja e do Estado. A separação existe em França desde a Lei de Separação de 1905 (excepto na Alsácia-Lorena no leste da França e na Guiana Francesa). A separação nos Estados Unidos data da Primeira Emenda da Constituição dos EUA, ratificada em 1791, e de uma decisão de 1947 do Supremo Tribunal dos EUA que estendeu a liberdade religiosa e o desestabelecimento da religião aos estados individuais.
Assim, tal como os Estados Unidos, a República Francesa não reconhece nem subsidia qualquer religião (Artigo 2 da lei de 1905), e respeita todas as crenças (Artigo II da Constituição de 1958).
Igreja e Estado
Mas a partir de um ponto de partida comum, os tribunais americanos ergueram um “muro de separação” mais elevado e mais impenetrável, como o Juiz Hugo Black lhe chamou na sua decisão de 1947, do que os seus homólogos franceses. Controvérsias que ainda hoje se dividem na sociedade americana, tais como a discussão religiosa nas escolas públicas após o horário de aulas e os subsídios governamentais às organizações religiosas, nunca foram questões políticas de peso em França. Desde 1959, o governo francês paga os salários dos professores nas escolas privadas, a maioria dos quais são religiosos, e concede subsídios directamente a essas escolas. Igrejas, templos e sinagogas construídos em França antes de 1905 são propriedade do Estado. Os governos nacionais e municipais mantêm estes edifícios, que são utilizados gratuitamente pelo clero. As festas religiosas são feriados oficiais em França. O governo organiza funerais religiosos para vítimas de catástrofes e para presidentes franceses.
Estas excepções a uma rigorosa separação entre Igreja e Estado em França resultam em parte do papel central duradouro da Igreja Católica. A participação na missa dominical caiu para cerca de 10% da população em França actualmente, mas 80% dos cidadãos franceses ainda são nominalmente católicos romanos. Isto faz da França o sexto maior país católico do mundo, depois do Brasil, México, Filipinas, Itália e… os Estados Unidos. O catolicismo era a religião estatal exclusiva da França antes de 1791, e uma das quatro religiões oficiais, juntamente com o luteranismo, o reformismo e o judaísmo (mais tarde o Islão na Argélia), reconhecido pelo Estado sob a Concordata Napoleónica de 1801 até 1905. O papel central do catolicismo ditou em parte a natureza da relação que o Estado francês mantém hoje com todas as organizações religiosas. As outras quatro principais religiões em França, como a igreja católica, foram organizadas a nível nacional, e o governo francês está actualmente a discutir com vários grupos islâmicos para conseguir um órgão representativo nacional semelhante para o Islão.
Em França, o governo regula as actividades religiosas em todas as suas dimensões – adoração, observância, prática, e ensino – para proteger os direitos dos outros, a ordem pública, a saúde, e a moral. Este controlo regulamentar aplica-se não só às organizações religiosas, mas a qualquer tipo de grupo organizado em França. Contudo, ao regulamentar as actividades religiosas, o Estado não faz interpretações religiosas. Não define religião, uma vez que o Estado é incompetente em matéria de crença. Mas o Estado também não faz excepções às leis e regulamentos gerais por motivos religiosos. Os tribunais americanos podem interpretar as leis de forma mais flexível quando está em jogo uma forte motivação religiosa – permissão para utilizar uma substância alucinógena em rituais indígenas americanos, por exemplo – uma política que criou controvérsia nos Estados Unidos durante a última década.
Pelo contrário, a lei francesa é aplicada sem qualquer consideração de religião, raça, ou riqueza. Esta abordagem tem as suas raízes na tradição universalista da democracia e cidadania francesas. Dentro da esfera pública, um cidadão francês não é definido em termos de traços particulares. A lei representa a vontade geral, mas não é simplesmente uma combinação de interesses privados. O direito é antes um acto de razão pública a ser decidido por argumentos racionais. Assim, as preocupações religiosas só entram no debate político se forem apoiadas por razões racionais.
A Tradição Francesa de Laïcité
O conflito tradicional entre Igreja e Estado em França, finalmente resolvido pela lei de 1905, tinha-se centrado na questão da autoridade moral. A Igreja Católica Romana só aceitou o princípio da liberdade religiosa em 1965, com a Declaração sobre a Dignidade Humana aprovada pelo Concílio Vaticano II. Até então, ao abrigo do Syllabus de 1864 e do decreto de Infalibilidade Papal de 1870, o Vaticano exigia que os governos nacionais impusessem ao seu povo as verdades morais ensinadas pela Igreja Católica – um requisito que colocava problemas não só à França mas também aos Estados Unidos. O termo francês laïcité, traduzido grosso modo como laicidade, foi criado para descrever a crescente oposição a esta autoridade moral detida pelos padres católicos. Com o tempo, o movimento laïcité veio a condenar a coerção religiosa como uma forma de influência religiosa indevida.
Se os franceses são mais sensíveis aos cultos religiosos do que os americanos, é em parte devido à ênfase histórica que a laïcité tem colocado na liberdade de consciência. Tanto a Declaração dos Direitos Humanos da ONU de 1945 (artigo 18) como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (ICCPR) abraçam a liberdade não apenas de religião, mas de “pensamento, consciência e religião”. A distinção entre estes diferentes tipos de liberdade é frequentemente ignorada pelos americanos, que, por razões históricas, consideram frequentemente os três sinónimos. Os americanos estão habituados a uma pluralidade de religiões. Estima-se que 40% dos americanos mudam de religião ou denominação pelo menos uma vez na sua vida. Assim, para os americanos, a liberdade de escolha da religião ou crença é a forma mais habitual tomada pela liberdade de consciência.
A lei francesa de 1905, pelo contrário, nunca menciona a religião. Ela garante no seu primeiro artigo a liberdade de consciência, e nesse contexto a liberdade de culto (culto, em francês). Esta ênfase na consciência tem raízes históricas. Os franceses, desde o fim das guerras religiosas dos séculos XVI e XVII, conhecem apenas uma grande religião maioritária. Ou uma delas era dentro da Igreja Católica, ou uma era um livre-pensador fora dela. Na tradição da laicidade francesa que emergiu deste contexto, a liberdade de consciência ainda é entendida pelos franceses como uma liberdade da autoridade moral de uma única religião dominante.
Liberdade religiosa e política
Esta diferença de ênfase tem consequências para a condução das relações externas. Os franceses tendem a simpatizar com o autor Salman Rushdie, por exemplo, que é percebido como o “Voltaire do Islão” livre-pensador. Os americanos concordam, mas também sublinham o direito de qualquer muçulmano a ser baptizado como cristão. Isto pode levar a uma diferença de abordagem na condução da política externa. A guerra civil no Sudão, por exemplo, tende a ser discutida no debate público dos EUA como uma guerra religiosa. Os esforços de mediação de paz dos EUA tenderam, portanto, a ser mais intensos, e mais centrados na questão da religião. A política francesa, pelo contrário, tende a tratar este conflito como uma rivalidade de poder tradicional e secular. Ambas as causas são legítimas. Mas ambas também se arriscam a ignorar os verdadeiros desenvolvimentos políticos e sociais – a democratização e os direitos das mulheres, por exemplo – que se verificam hoje em dia nos Estados muçulmanos. Neste sentido, tanto a opinião francesa como a americana tendem a ignorar a maioria das pessoas muçulmanas que seguem o Islão e são também bons cidadãos.
A diferença de ênfase também tem consequências para a política interna. Na tradição americana, por exemplo, a fé islâmica é totalmente compatível com a liberdade religiosa. Mas, na tradição francesa, alguns aspectos do Islão podem contradizer o princípio governante da laicidade. Um amplo debate público surgiu recentemente em França, por exemplo, sobre a questão de saber se os estudantes islâmicos deveriam ser autorizados a usar lenços de pescoço nas escolas públicas francesas. A questão surgiu porque as escolas públicas francesas são consideradas como terreno neutro, onde qualquer simbolismo religioso ou político é proibido. A prática acabou por ser permitida, mas especificamente com o fundamento de que os lenços não estavam a ser usados ostensivamente ou como meio de proselitismo. Em geral, a liberdade religiosa é considerada em França como um direito humano, mas nunca isolada de outros direitos humanos universais. A França opõe-se assim a um estatuto especial da liberdade religiosa sobre a liberdade de consciência.
Esta visão da liberdade religiosa ajuda a explicar a legislação francesa sobre “cultos perigosos”, aprovada na sua versão final pela Assembleia Nacional francesa em Junho de 2001. A liberdade de associação em França é garantida pela Lei de Associação de 1901. A lei sobre “cultos perigosos” concede simplesmente ao governo o direito, sob controlo judicial, de dissolver tais associações se violarem a lei francesa. O governo francês também mantém o direito de rever as decisões de concessão de um estatuto fiscal especial a organizações religiosas ao abrigo da Lei de Separação de 1905, se o culto não for a sua “actividade exclusiva”. Os grupos religiosos que prosseguem actividades não ligadas ao culto são livres de o fazer ao abrigo da disposição de 1901 relativa às associações e fazem-no com as habituais isenções fiscais concedidas a todas as associações. Estas medidas reflectem o respeito francês por todas as crenças religiosas, mas não por acções que restringem a liberdade de outros acreditarem ou não acreditarem.
A este respeito, os governos francês e americano diferem genuinamente nas suas abordagens à religião. As suas duas sociedades podem mesmo diferir na definição da própria religião. Mas esta diferença não deve prejudicar as relações franco-americanas, nem a sua defesa dos direitos humanos no resto do mundo, que cada uma continuará a perseguir de acordo com a sua própria visão da liberdade religiosa.
Dominique Decherf é actualmente bolseiro de investigação no Center for International Affairs da Universidade de Harvard. É doutorado em Direito pela Sorbonne e é um diplomata francês sénior.